Desde o início da pandemia de Covid-19, muitos consumidores que desejam falar sobre remarcação de passagens vem enfrentando dificuldade para fazer contato com empresas aéreas, pelos canais de comunicação disponibilizados pelas empresas.
Aqueles que remarcaram os bilhetes no início da pandemia para o final de 2020 ou início de 2021 não estão conseguindo alterar a data do voo sem ônus. Mesmo diante do conhecimento geral – inclusive das empresas – de que vivemos um momento crítico da pandemia, com elevado índice de contágio e mortes, o que impossibilita a realização da viagem.
Há situações em que a companhia informa ao passageiro que o crédito já perdeu a validade, mesmo ciente de que o prazo final correspondia à data de elevada contaminação da cidade de embarque ou de destino.
O desequilíbrio entre as partes torna-se ainda maior no caso do passageiro que, durante o período da pandemia, resolva cancelar a sua viagem, pois estará vinculado à multa contratual que está sendo arbitrada em valores abusivos por parte das companhias aéreas.
Na instabilidade desta pandemia que continua assolando o mundo, sobretudo o Brasil, não se pode admitir que o consumidor que opte pela desistência do voo contratado para um destino com elevada taxa de contaminação esteja sujeito a “eventuais penalidades contratuais”, quando, na verdade, o pedido não decorre, propriamente, de sua vontade, mas, sim, do temor de se deslocar e contrair a enfermidade.
De acordo com a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), do Ministério da Justiça, de janeiro a setembro do ano passado, houve um aumento de cerca de 55% nas reclamações no Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor (Sindec) em relação ao mesmo período de 2019. O sistema reúne reclamações feitas nos diferentes Procons. Enquanto no Consumidor.gov.br, houve uma alta de 40% de janeiro a julho, quando comparado ao mesmo período do ano passado.
Em agosto de 2020 entrou em vigor a Lei 14.034/20, aprovada para tentar conter o impacto da crise sanitária no setor aéreo. Entre as medidas, havia a possibilidade de passagens emitidas antes daquele momento serem remarcadas sem multa e, no caso de cancelamento pelo passageiro, as empresas teriam prazo de 12 meses para restituir os valores.
Passando um ano, começam a surgir arestas desse período. “Houve quem remarcou voos no ano passado para este ano e volta a precisar fazer mudanças. Por enquanto, os consumidores estão mais pacientes, inclusive com os prazos para receber estorno, mas isso pode não durar muito tempo se as empresas não forem flexíveis”, disse a advogada Luciana Atheniense, segunda-secretária da Comissão de Direito do Consumidor da OAB federal ao portal Jota.Info. “Assim, é possível que haja um efeito de se buscar a Justiça por questões que estavam aparentemente resolvidas.”
Em julho de 2007, 36% dos voos em todo o Brasil sofreram atrasos e 13% foram cancelados, segundo a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Foi o ápice do caos aéreo vivido no país, que assistiu a uma sequência de protestos de controladores de voo, panes em sistemas e até a passageiros invadindo pistas para protestar contra atrasos.
Com as reclamações se avolumando, naquele mesmo ano, em outubro, foram introduzidos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Juizados Especiais Cíveis em aeroportos em caráter emergencial. A iniciativa retornou em 2010, quando houve cerca de 15 mil atendimentos nos seis meses seguintes – com média de acordos variando de 23%, nos aeroportos de São Paulo, a 53%, em Brasília.
Atualmente, sete aeroportos têm JECs para resolverem conflitos entre consumidores e companhias aéreas ou agências federais, como a Anac ou a operadora de aeroportos Infraero. Mas será que faz sentido ter juizado nestes locais permanentemente?
Os contratempos e atrasos de uma década atrás não são mais a realidade no setor aéreo brasileiro, especialmente considerando voos domésticos. Em dezembro de 2019, por exemplo, houve em média apenas 2,92% de cancelamentos e 3,60% de atrasos em mais de uma hora. Isso significa que, considerando todos os pousos e decolagens regulados pela Anac, cada um atrasou ou foi cancelado em média nessa proporção.
Companhias aéreas afirmam que há uma judicialização intensa de questões que poderiam ser resolvidas por outras vias e, frequentemente, os juizados especiais são apontados como parte dos fomentadores desse movimento. Afinal de contas, é possível ajuizar uma demanda logo depois que uma situação desagradável ocorra nos tribunais, sem necessidade de advogado e isento de custos.
“O setor aéreo no Brasil é referência em vários aspectos, como idade da frota, pontualidade e extravio de bagagem. Apesar disso, o que experimentamos aqui é o crescimento exponencial de judicialização no setor”, afirmou Bruno Bartijotto, diretor jurídico da Latam, em webinar realizado pelo Jota.Info em fevereiro com patrocínio da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear).
Não por acaso, o mercado brasileiro responde pela maior parte dos processos abertos contra as aéreas, que atuam em vários países, o que seria reflexo dos incentivos à litigância, entre os quais a presença dos juizados nos aeroportos e a gratuidade de Justiça sem critérios objetivos. No caso da Latam, a empresa afirma que 98,5% dos processos por questões de voo que enfrenta seriam no Brasil, sendo que apenas metade de suas operações está no Brasil.
Segundo a Delta Airlines, em 2017, a empresa operou, em média, 5.400 voos diários nos Estados Unidos da América. No período, a companhia foi acionada em 130 processos. Já no Brasil, ofereceu em média 5 voos diários e foi ré em 1.263 processos. Entre janeiro e junho de 2018, foi processada 54 vezes nos EUA e 721 vezes no Brasil.
Em última instância, todos os consumidores arcam com os custos dessa judicialização no valor do bilhete, o que é um entrave para o barateamento de passagens aéreas no Brasil. Considerando os valores estimados em gastos em litígio nos demonstrativos, as ações cíveis, incluindo danos materiais ou morais estabelecidos, representavam 7% do total em 2019 na Gol, que disponibiliza esses dados aos investidores. A principal alegação contrária a essa litigância é de que boa parte dos processos abertos têm motivação indevida – ou porque um atraso foi ocasionado por fatores externos ou porque não houve dano comprovado, por exemplo.
Decisões judiciais polêmicas acabam alimentando essa percepção. Em novembro passado, a 5ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis do Rio de Janeiro condenou a Latam a indenizar duas juízas do Rio de Janeiro que compraram passagens aéreas para Nova York partindo do aeroporto de Cumbica, em São Paulo. No mesmo bilhete, havia a saída da capital fluminense, no aeroporto Santos Dumont, mas elas compareceram ao do Galeão.
Ao perceberem o erro, elas tentaram embarcar alternativamente nesse terminal, mas o pedido foi negado pela companhia e as passagens de ida e volta a São Paulo, canceladas. A 5ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis fluminenses confirmou decisão do 2º Juizado Especial Cível de Niterói (RJ), e estabeleceu o pagamento de todos os custos extras que as mulheres tiveram, além de R$ 10 mil de indenização por danos morais.
Em nota sobre a decisão na época, a Latam afirmou que realiza o cancelamento automático quando não há comparecimento, sob regulação da ANAC. Também sugeriu que o caso reforçaria a perspectiva da companhia sobre o excesso de processos contra empresas do setor, ressaltando “a necessidade de se combater o alto nível de judicialização e de eventuais valores desconexos de condenações recorrentes nos atuais processos judiciais contra empresas aéreas no Brasil”.
“Somos nós, o Estado, que estamos chamando as pessoas a litigar por qualquer razão com a existência dos juizados em aeroportos. A mediação, conciliação e negociação são relevantes. Durante a pandemia, houve uma evolução no estímulo de outros métodos de solução de conflitos”, critica o advogado Henrique Ávila, ex-conselheiro do CNJ.
Por outro lado, há advogados que defendem os juizados localizados nos aeroportos. “Se de fato há muitos processos na Justiça em relação a este tema, principalmente se há muitas decisões condenando as aéreas, a solução não passa por dificultar o acesso à Justiça, mas pensar em alternativas”, diz José Pablo Cortês, presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo. Para Cortês, os juizados são uma ferramenta interessante também para as empresas, que poderiam investir na conciliação.
Além das ferramentas que as próprias empresas devem oferecer para manter a comunicação com clientes, existem outros canais que buscam fazer essa interlocução com os passageiros, como o portal federal de intermediação Consumidor.gov.br. Durante os primeiros meses da pandemia, houve um aumento nas reclamações neste espaço. Elas aumentaram no momento em que a movimentação de pessoas nos aeroportos, bem como o número de pousos e decolagens, caiu devido à pandemia, ao mesmo tempo em que empresas e passageiros tiveram que lidar com muitas incertezas.
Em artigo publicado no Jota.Info, o ex-conselheiro do CNJ Henrique Ávila afirma que há dificuldades estruturais e culturais de grande magnitude a serem enfrentadas para que o país passe a dar um tratamento adequado aos conflitos e assim enfrente o risco-Brasil.
“Juristas norte-americanos, ingleses e suíços não escondem seu assombro e sua dificuldade em compreender o porquê de, no Brasil, existir um juizado especial instalado em cada um de nossos principais aeroportos. Tais ferramentas são aplaudidas e por vezes necessárias diante da realidade local; acabam, no entanto, por retroalimentar fenômeno que deveriam coibir”, escreve Ávila.
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