Por Cláudia Lima
No início de março, o Conselho da Conferência de Haia vai decidir se continua chamando o grupo de especialistas para organizar uma futura Convenção de Haia de Proteção dos Turistas, proposta pelo governo brasileiro. Como tive a honra de elaborar a primeira proposta de convenção, gostaria de dar conhecimento a todos da importância e oportunidade desta proposta, oriunda de trabalhos de pesquisa da Asadip (Associação de Professores de Direito Internacional Privado das Três Américas) e da UFRGS[1]. A proposta de convenção, chamada de Projeto-Turismo, com apenas 10 artigos, propõe a criação de uma rede de cooperação mundial e facilitar o acesso dos turistas internacionais ao sistema de proteção do consumidor: cada país utiliza seu sistema de Direito do Consumidor e suas leis de defesa dos consumidores em prol da solução rápida dos problemas dos turistas não residentes, através de um formulário multilíngue, que possibilita a compreensão do problema sofrido no país visitado.
Os turistas internacionais já chegam a 1,4 bilhão por ano[2] e, destes, 45% se destinam a países emergentes. Segundo a Organização Mundial do Turismo da ONU, em 2030, esta porcentagem aumentará para 55%, totalizando 1 bilhão de turistas internacionais a cada ano, cujo destino serão países não desenvolvidos ainda ou emergentes[3]. É preciso notar que o perfil do turista também mudou: de um turismo de elite e apoiado por agentes de viagens passamos para um turismo de massas e de “aventura”, em que muitos — no Brasil, mais de 64% dos turistas estrangeiros[4] — não usam agentes de viagens de seus países de origem e preferem contratar tudo de forma espontânea pela internet, através de outros intermediários ou diretamente no país em que estão visitando[5].
Estes “novos” turistas — chineses, russos e brasileiros — são consumidores ávidos[6] e hoje não têm acesso a informações, aos recursos de proteção dos consumidores residentes (não conseguem sequer acessar o app, por exemplo, da grande rede europeia para casos internacionais, a ECC-Net, ficam sem conselhos, sem resolução de controvérsias e totalmente sozinhos para defender seus direitos), assim ficam sem acesso à Justiça (muitos países, como o Brasil, exigem residência para os juizados de pequenas causas, a presença física na audiência marcada para dias depois e, para as ações, exigem uma caução — cautio judicatum solvi), nem mesmo a mediação, que leva tempo (turistas passam rapidamente nos países)[7], e os turistas internacionais ficam restritos aos mecanismos — se oferecidos — de arbitragens privadas on-line dos fornecedores, bastante duvidosos. Só os turistas europeus que visitam países europeus conseguem alguma proteção. Os demais turistas sequer sabem a quem recorrer e quando acham os “Procons” têm dificuldades linguísticas.
A proposta brasileira foca nessas vulnerabilidades extras dos turistas e pretende aumentar o acesso desses consumidores — sem discriminação de residência — aos mesmos remédios administrativos e judiciais dos turistas residentes. Cada país oferece o SNDC (Sistema Nacional de Defesa do Consumidor) que possui, oferece as mesmas soluções alternativas de controvérsias ou judiciais aos turistas internacionais, mas a proposta cria uma autoridade central — como muitas das convenções de Haia — que poderia ser a Senacon ou DRCI, e esta autoridade centralizadora ajuda na comunicação entre os agentes competentes e os juízes dos países envolvidos.
Na prática, se um turista estrangeiro tiver problemas de consumo no Brasil, ele poderia ir ao Procon local ou mesmo, por aplicativo, preencher o formulário multilíngue, esclarecendo seu problema ao agente do Procon, que ligaria para o fornecedor e tentaria uma solução. Na Copa do Mundo, o sistema foi testado e conseguiu 80% de solução só neste primeiro telefonema, pois, se os turistas voltam para seus países de origem, o Procon fica e pode multar, caso a prática seja abusiva. Ao se interessar pelo problema dos turistas internacionais, ganha o país visitado e evitasse uma lide internacional e o desgaste da imagem de um país “sem lei” e de “impunidade”. Se não for possível solucionar, o formulário multilíngue é impresso pelo Procon e entregue ao consumidor, que pode, depois de retornar ao seu país, decidir se deseja ou não entrar com uma ação, mas já teve uma boa experiência de “proteção” legal no Brasil.
O Brasil tem muitos problemas, mas também tem muito potencial turístico e mais de 800 Procons espalhados pelo Brasil. Se ainda não podemos mudar a nossa imagem no que se refere à segurança pública, podemos, sim, mudar nossa imagem quanto ao cumprimento do CDC pelos fornecedores de produtos e serviços também em relação aos turistas internacionais. Isso incentivaria o turismo no Brasil. Recebemos parcos 6 milhões de turistas, enquanto o México recebe 30 milhões, e a pequena ilha da República Dominicana recebe os mesmos 6 milhões. Há muito a fazer. O Sindec não tem dados sobre o atendimento aos turistas não residentes, nem o consumidor.gov, que poderia ser adaptado e ter um setor em inglês (turist-consumer) para conciliação em inglês com as empresas de turismo nacional. O Brasilcon e a UFRGS estão criando um projeto-piloto para que o sistema possa começar a ser utilizado voluntariamente no SNDC. Assim, os Procons ganhariam um formulário multilíngue, que criamos baseado na experiência do Mercosul (que tem um acordo semelhante desde 2003) para ajudar a entender o problema dos turistas estrangeiros e os turistas não residentes de forma mais eficiente. O SNDC já tem boa experiência com turistas nacionais, mas poderia aumentar o grau de informações dos turistas internacionais, nos aeroportos, rodoviárias, pontos turísticos, pontos da “polícia dos turistas” e do Ministério do Turismo, assim como nas embaixadas e consulados, de forma que possam rapidamente se informar e conseguir apoio, como se fez na Olimpíada e no Mundial.
A proposta brasileira é de uma convenção de cooperação e facilitação do acesso à Justiça para turistas internacionais e já conta com o apoio de muitos países latino-americanos e emergentes. Se for aceita na famosa Conferência de Haia, a proteção do consumidor ganhará um texto internacional realmente global, os turistas brasileiros também poderiam usar os sistemas de defesa do consumidor dos outros países, sem discriminação, e o mercado brasileiro vai evoluir. A evolução de nossa sociedade só se dará se cada setor der um passo à frente. A proteção internacional dos turistas como consumidores pode ser este primeiro passo que tanto precisamos.
[1] Veja http://asadip.files.wordpress.com/2012/04/carta-de-rio-de-janeiro8asadip230312en-espac3b1ol-y-portviii.pdf.
[2] UNWTO World Tourism Barometer – January 2019, International tourism arrivals in 2018: 1,4 million (growth of 7% in relation to 2017) in: https://www.e-unwto.org/doi/abs/10.18111/wtobarometereng.2019.17.1.1.
[3] UNWTO World Tourism Barometer – v. 16. January 2018. in:<http://cf.cdn.unwto.org/sites/all/files/pdf/unwto_barom18_01_january_excerpt_hr.pdf>.
[4] Veja dados da Embratur, in http://www.dadosefatos.turismo.gov.br/images/pdf/EstatisticasBasicasdoTurismo-Brasil2016-Anobase2015.pdf e ATHENIENSE, Luciana Rodrigues. A responsabilidade jurídica das agências de viagens. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 17.
[5] Veja TUDELA, José, “Madurez y insuficiencia del derecho del turismo español: su presente y sus incertidumbres”, in Derecho del Turismo, FACAL, Julio (Org.), Ed. FCU, Montevideo, 2006, p. 251ss.
[6] WEI, Dan. A Protecção do Turista através do Direito do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, v. 83, 2012, p. 40ss.
[7] Veja o relatório de Emmanuel Guinchard ‘on the desirability and feasibility of further work on the Proposal on a Draft Convention on Co-operation and Access to Justice for International Tourists’.
Claudia Lima Marques é professora titular de Direito Internacional Privado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutora pela Universidade de Heidelberg (Alemanha) e mestre em Direito (L.L.M.) pela Universidade de Tübingen (Alemanha). É presidente do Comitê de Proteção Internacional dos Consumidores e da International Law Association (Londres). Ex-presidente do Brasilcon e da Asadip (Paraguai).
Fonte: Revista Consultor Jurídico